Na Hora H

O AL DI LA DO CINEMA

Confira a excelente crítica que o meu amigo médico e cinéfilo Napoleão Veras escreveu sobre o novo filme de Martin Scorses, “O Irlandês”. Te do nom cinxto primoroso. Vale a pena a leitura para os amantes, simpatizantes ou admiradores do bom cinema.

O AL DI LA do CINEMA

Mergulho fundo madrugada adentro no novo filme de Martin Scorcese, O Irlandês, nas suas 3 horas e 1/2 de duração, curtindo cena a cena aquele universo de máfia e gângster, pontificado por três ases da tela, Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci.

A sensação que se descortina desde os primeiros instantes é a de estar diante de um clássico. O ritmo, a atuação dos 3, a direção, roteiro, argumento, trilha sonora (linda), tudo. Os crimes de Frank O Irlandês Sheeran narrados na medida da genialidade, com seu código de lealdade, obediência cega, e crueldade, uma das marcas do gênero. Frank, conhecido pelos comparsas como ‘pintor de paredes’, pelos desenhos que suas vítimas deixam salpicados nas paredes de casas, hotéis, ruas.

Homem treinado pra matar, depois de permanência nas tropas do exército na 2a. Guerra Mundial, agora e cada vez mais a serviço do crime. Acrítico, amoral, cão de guarda à espera de ser estumado. Os desfechos não diferem muito de um sem número de filmes do gênero, com a violência campeando. A atuação dos três é o além do filme, o al di la, o que transcende, talvez a metafísica. Por mera coincidência a bela canção eterna Al DI LA faz parte da trilha sonora? Talvez sim.

Frank (Robert De Niro) num papel contido, de pequenos e graves gestos, a reafirmar sua grandeza de ator. Russ (Joe Pesci) segue o modelo minimalista, gestos comedidos, a um tempo marcantes, definitivos, que dão sua imensa dimensão em cena. Jimmy (Al Pacino), ao contrário dos companheiros, exuberante, histriônico até, mas igualmente mágico, convincente, com magnetismo em cena, no diapasão das notas mais sentidas de Al DI LA.
Comparar os três? Não há como nem porque. Cada um no seu papel, com domínio pleno, a expressar o desempenho que o personagem pede.

O ritmo de tão envolvente e real desperta no expectador um desejo de futurologia, talvez o de querer imaginar quais cenas daquelas ficarão para a posteridade, reprisadas ad infinitum como só pode ocorrer aos clássicos – que não têm hora para findar-se.

Há filmes que ficam em nós feito tatuagem, como na música de Chico. Vemos uma, duas, três vezes; depois passamos anos a fio vendo pedaços deles, em sessões inesperadas, improváveis mesmo, no meio de uma tarde qualquer, ou num corujão desses, nas asas de uma insônia que nos obriga a vigiar anjos e demônios que pululam num céu entediante e negro. Estando a selecionar canais e canais aleatórios, de repente reaparece de novo o filme – parte 3, pode ser -, e reacende um encadear conhecido, gostoso, receita de deleite puro, onde de novo provamos sensações que seguramente vão fazer daquele momento sem expectativas algo como uma quadra deliciosa.

Robert De Niro encarna um personagem contido, de pequenos e graves gestos, a reafirmar sua grandeza de ator

Magia que só o cinema e uma penca de filmes definitivos – em gêneros diversos – podem despertar, como, só pra citar alguns campeões de reprise, O Grande Gatsby, A Noviça Rebelde (que jamais consegui ver por inteiro), a obra completa de Chaplin e, singularmente, O Poderoso Chefão, com suas três partes, igualmente famosas.

Lembrar aqui três sequências da saga dos Corleone, todas estampadas com morte, como dificilmente seria de outra forma, e que nunca cansei de revê-las mesmo passados 47 anos. Depois de guerrear toda a vida com outras famílias mafiosas, e sofrer grave atentado, Vito Corleone (Martin Brando), o mais diplomático, morre placidamente no seu jardim enquanto brinca de aguar as plantas com o netinho Anthony.

Luca Brasi, capanga dos Corleone, recebe missão do Chefão, mas os inimigos desconfiam. Sua punição é comunicada aos Corleone de forma peculiar: um peixe é entregue envolto em um colete à prova de balas, significando “Luca Brasi dorme com os peixes”. O cantor amigo, Fontane, é rejeitado por um produtor de cinema de participar de filme, contrariando um pedido dos Corleone. Em resposta, o executivo recebe na cama, enquanto dorme, a cabeça decepada do seu cavalo de raça premiado.

O Irlandês talvez não tenha a exuberância de cenas emblemáticas como estas, mas certamente tem um repertório que ficará para alegrar as sessões coruja por anos e décadas. Como esquecer a trama que levará à morte de Jimmy, baleado na nuca pelo amigo maior, pintor de paredes, em nome da máfia, que não admite contrariedade de pensamentos e ações – por mais absurdas e pérfidas. Ou Jack O Irlandês abandonado por amigos, mulher e filhas, no fundo de seca solidão, sem a quem recorrer senão a agentes funerários na escolha do seu caixão, da gaveta funerária, do seu palmo de chão derradeiro.
Ou ainda e principalmente, a preciosidade da atuação dos seus astros, a química de como vão em cena, a nostalgia leve e tocante da trilha sonora, os três personagens principais: tão amigos e potencialmente inimigos, tão fiéis e infiés a depender de que ângulo, tão cheios de códigos e tão sem escrita para seguir.

NAPOLEÃO VERAS

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