Há cerca de 1.300 anos, um escriba na Palestina teve acesso a uma cópia dos Evangelhos da Bíblia escrita em dialeto siríaco e apagou o texto original para fazer uma tradução. A decisão pode parecer estranha — afinal, por que ele não preservou o original e escreveu em outro suporte? —, mas acontece que pergaminhos e papiros eram materiais muito escassos naquela época — principalmente no deserto.
Por isso, era uma prática comum apagar um manuscrito para reutilizar a superfície e escrever um outro texto nela — esses suportes reutilizados são os chamados palimpsestos.
Adquirido pelo Vaticano em meados do século 20, o documento foi finalmente estudado por um pesquisador que conseguiu desvendar a camada original do palimpsesto. Grigory Kessel é um medievalista da Academia Austríaca de Ciências e tornou legíveis as palavras feitas no século 3 e, depois, apagadas e transcritas no século 6. Os achados foram divulgados em março no periódico New Testament Studies.
Esta é uma das mais antigas e raras traduções do Novo Testamento já encontradas em siríaco. “Até recentemente, apenas dois manuscritos eram conhecidos por conter a tradução do siríaco antigo dos Evangelhos”, afirma Kessel, em nota. As versões descobertas anteriormente estão guardadas na Biblioteca Britânica, em Londres, e no Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai.
O medievalista identificou o manuscrito após comparar e analisar imagens do documento sob luz natural e sob luz ultravioleta, disponibilizadas no acervo digital da Biblioteca do Vaticano. “Esta descoberta prova o quão produtiva e importante pode ser a interação entre tecnologias digitais modernas e pesquisa básica quando se trata de manuscritos medievais”, comemora Claudia Rapp, diretora do Instituto de Pesquisa Medieval da Academia Austríaca de Ciências.
Além disso, o achado ajuda especialistas a vislumbrarem como eram as primeiras transmissões textuais da Bíblia.
Uma comparação feita pelos estudiosos é que, no grego antigo do livro de Mateus (capítulo 12, versículo 1), está escrito: “Naquela época, Jesus passava pelos campos de trigo no Shabat [dia de descanso no judaísmo, equivalente ao sábado]; e seus discípulos ficaram com fome e começaram a colher as espigas e comer”. Já no antigo siríaco aparece: “[…] começaram a colher as espigas, esfregá-las nas mãos e comê-las”.
A versão em antigo siríaco foi feita pelo menos um século antes da mais antiga edição grega já encontrada.
Fonte: Revista Galileu